domingo, 16 de março de 2014

A Era Hiboriana de Conan e suas Nações



Um tema bastante interessante diz respeito aos chamados "usos do passado", mais especificamente, a forma como as sociedades de outros tempos e lugares são representados no presente, ou melhor, em algum contexto mais contemporâneo, com toda a carga ideológica, conceitual e temática inerentes ao ambiente sócio-histórico, político e cultural do referido contexto.

Como bem afirmado pelo historiador medievalista da Escola dos Annales, Marc Bloch: "o passado em si não é o objeto do historiador, mas sim a importância do presente para a compreensão do passado e vice versa". 

Isso significa afirmar que quaisquer fontes, documentos e textos, quaisquer conjunto de enunciados, quaisquer obras da literatura, ou mesmo quaisquer artefatos culturais de naturezas diversas (iconográficos, gráficos ou materiais) que tratem de algum passado, seja histórico ou munido de traços históricos, todos esses documentos dispõem de signos, significantes e significados inerentes ao contexto presente de consecução dos mesmos.

Nesse ponto estamos próximos daquela arrebatadora verdade acerca das obras de Homero, a Ilíada e a Odisseia. Devemos lembrar que os poemas narravam eventos em torno da Guerra de Troia e depois, sobre o retorno de um de seus heróis para sua terra natal, a Ilha de Itaca, tratando-se assim de eventos que teriam ocorrido por volta de 1200 A.C, no final do chamado Período Minoico-Micênico da história grega. 

Porém, quase toda a questão acadêmica sobre os conhecidos poemas não circunda somente na enfadonha Questão Homérica de definição da real autoria dos poemas, mas sim no fato de que o poeta (ou poetas, segundo alguns) colocou diversos traços de sua própria época histórica no passado retratado, traços históricos do Período Homérico da Grécia Antiga (e o nome, Período Homérico não se deve a esse fato?), com elementos culturais, políticos e sociais desse período.

Assim sendo, os brilhantes estudos de historiadores renomados do porte de Jean-Pierre Vernant ou de Pierre Vidal-Naquet sobre o Período Homérico não deixam de lidar com os supracitados "usos do passado", visto que eles procuraram compreender, entre tantas outras coisas, os elementos históricos do período de compilação e difusão do corpus homérico, os aspectos sociais, políticos e culturais do mundo do autor da obra e que foram inscritos e misturados, conscientemente ou não, ao passado mítico narrado. 

Não esquecendo-nos, claro, de deixar demarcado que grande parte desse processo ocorreu devido aos aspectos inerentes da tradição oral, que usualmente transforma os eventos narrados oralmente, devido as contínuas recitações de poemas e narrativas proferidas de "boca em boca".

É nesse sentido que trato o tema do título deste post, "A Era Hiboriana, de Conan e suas Nações". Isso porque, o criador da personagem Conan, da Ciméria, o texano Robert E. Howard não criou somente um personagem, consolidando igualmente todo um gênero literário e narrativo denominado de Sword and Sorcery (Espada e Feitiçaria).

Ele criou, para além disso, um "mundo meta-histórico", uma Era histórica ficcional com elementos históricos "reais", melhor dizendo, uma espécie de Era histórica anterior ao Neolítico, onde haveria um conjunto diversificado e complexo de civilizações e sociedades, que segundo a própria mitologia criada seriam destruídos em um grande cataclisma, evento esse que teria sido o marco inicial da história cronológica da humanidade, munida de sua evolução linear convencional comumente difundida em livros didáticos.

O que chama a atenção, no entanto, é que Howard se utilizou de elementos culturais, políticos, religiosos e sociais de civilizações históricas, tanto as ditas civilizações antigas como aquelas sociedades estruturadas na Idade Média européia e oriental, em uma espécie de miscelânea de povos e culturas, com representações de povos que apresentam semelhanças com os gregos e romanos antigos, com os mongóis do medievo, com os árabes e europeus do medievo, os japoneses, os chineses e os egípcios antigos, os persas, mesopotâmicos, eslavos, magiares e tantos outros.

A Era Hiboriana seria assim uma Era de pré-civilizações históricas, datada mais ou menos em 10.000 A.C, uma espécie de "contexto histórico-ficcional" de diversos povos e culturas que, segundo Howard foram destruídas e apagadas da memória da história convencional em meio há um fenômeno climático da natureza, ainda que tais povos tivessem traços daquelas culturas e civilizações que viriam a surgir a posteriori.

Tratar-se-ia de um passado semi esquecido de nossa própria história, um passado com características das civilizações que viriam a se organizar posteriormente e que para nós, contemporâneos do século XXI, estão inseridas na chamada História Antiga e Medieval, segundo os matizes convencionais da disciplina da história.

O próprio Howard, em meados da década de 1930 escrevera um texto chamado, A Era Hiboriana e no prefácio deste texto defendera que seu objetivo seria conceber uma conotação mais realista para as aventuras de Conan, como que um pano de fundo ficcional para uma série de narrativas que teriam uma base realista. 

Assim, a Era Hiboriana seria como que um parâmetro para as narrativas ficcionais de Conan, sendo que Howard se comprometia a seguir fielmente esse parâmetro previamente concebido por ele, tal como o faria qualquer escritor de um romance histórico em relação a "história real" das civilizações humanas.

Reinos, civilizações, impérios e nações ficcionais surgiram então nas linhas de Conan, bem como um mapa histórico-geográfico dos continentes da África, Ásia e Europa, unidos em uma espécie de Pangeia, onde estariam inseridos todos esses reinos, nações e civilizações baseados em elementos mesclados de sociedades da antiguidade e do medievo.

Nesse sentido, a famosa Aquilônia, onde Conan se tornaria rei ao final de sua vida e carreira seria culturalmente e politicamente a mescla do Império Carolíngio com o Império Romano Germanizado dos séculos IV e V D.C, a Ciméria, terra natal do bárbaro, equivaleria a uma Inglaterra Celta com suas tribos bretãs ainda não "civilizadas" e pré-romanas, enquanto que a Coríntia seria o amálgama ficcional da civilização grega clássica do século V A.C. 

A Nemédia, por sua vez, apareceria como que uma versão suis generis do Sacro Império Romano Germânico do medievo, a Stygia, quase que o espelho distorcido do Egito Antigo faraônico, misturado ao período pré-dinástico, ficando a Hiperbórea como o reflexo ainda mais bizarro da Rússia czarista misturada a um totalitarismo soviético anacrônico (ainda que não anacrônico em relação aos anos de consecução da narrativa de Howard), enquanto Khitai apareceria como a China de Marco Polo e Shem, seria vislumbrada como uma nação a integrar os povos semitas que um dia ocuparam a Mesopotâmia, a Síria, a Palestina e a Arábia de nosso mundo "real histórico".

Howard efetuou todo esse movimento como que em auxílio para suas tramas, de modo a torná-las mais verossímeis a seus leitores, o que sugere um alto grau de imaginação histórica da parte dele. Não é descabido explicar aqui que o filósofo da história, R.G. Conligwood afirmara, em uma famosa obra teórica, que ao longo do processo linear histórico ocorrera um desenvolvimento gradual da imaginação histórica por parte dos homens, principalmente aqueles do Ocidente.

Essa apurada imaginação histórica, entendida como o conjunto de ideias gerais que temos acerca dos fatos e eventos do passado das sociedades humanas, teria tornado a dita civilização ocidental cada vez mais consciente de seu papel e de sua identidade no mundo contemporâneo. 

Concordando ou não com as premissas da imaginação histórica enquanto imperativo identitário de uma mal definida civilização ocidental, uma coisa é certa; enredos narrativos ficcionais que baseiam-se na história acontecida costumam gerar identidades nos receptores dessas respectivas narrativas, visto que o passado é um dos elementos mais bem sucedidos para tais fins, sendo coerente e crível uma construção histórica complexa e não totalmente arbitrária para o sucesso dessas narrativas ficcionais.

É nesse ponto que gostaria de tratar o termo "Nações" na Era Hiboriana de Conan e no fato de Howard, conscientemente ou não, se valer de seu próprio contexto histórico, aquele da primeira metade do século XX e especificamente, aquele da Grande Depressão dos anos 1930, para construir seu mundo ficcional. 

Isso porque o mapa da Era Hiboriana e as narrativas sobre os próprios Reinos e Impérios desse mundo ficcional, possuem características históricas não somente do mundo antigo e medieval, mas igualmente dos Estados-Nações Modernos, principalmente aqueles definidos como Nações Civilizadas por Howard. 

Seguindo os princípios tradicionais de que uma nação se constitui pela história em comum, língua, instituições e etnicidade dos povos que integram seu território e são assim governados por um Estado enquanto aparelho ou entidade política, Howard deu um caráter moderno para essas Nações na obra, visto que, como bem explicado pelo historiador Eric Hobsbawm, todos esses elementos poderiam até pré-existir em quaisquer coletividades do passado, mas a homogeneização de todos esses elementos possuiriam uma artificialidade inexistente em períodos anteriores ao século XIX.

Em outras palavras, Howard executou a constituição de um mundo integrado por fronteiras nacionais ao estilo contemporâneo, um mapa recortado por nações herméticas e de fronteiras definidas, não somente espaciais, como também culturais, linguísticas, políticas e étnicas, o que inexistia no Mundo Antigo e muito menos no Mundo Medieval.

Um dos maiores especialistas brasileiros no que tange as narrativas de Howard e seu mundo ficcional, Renato Amado Peixoto reitera em dois textos acadêmicos que o auto questionamento a identidade sulista e texana do autor auxiliaram na consecução de uma narrativa permeada de verossimilhança, bem como uma identidade familiar que ele se atribuía e reforçava constantemente. 

Isso porque Howard seria um questionador niilista da moral sulista dos EUA, dando vasão ao mundo selvagem colonizado pela expansão do oeste do século XIX, aquele mundo dos índios cheroquis e das demais nações indígenas que foram exterminados pelos brancos. 

Por tal motivo que observamos a exaltação em sua obra do tipo selvagem e do bárbaro em contraposição ao homem civilizado. Isso também teria sido efetuado com base em sua identidade familiar, visto que ele descendia de ancestrais irlandeses por parte de mãe, levando-o a idealização dos povos celtas que lutaram e enfrentaram os ditos povos civilizadores, tais como os romanos da antiguidade.

Mas existe outro ponto na narrativa de Howard, especificamente aquela em torno da Era Hiboriana, que vai muito além de identidades pessoais, regionais ou familiares, uma identidade vinculada a seu macro-contexto. O fato é que Howard, tal como a maior parte dos homens da primeira metade do século XX, guardada as proporções, não conseguia conceber o Mundo Antigo e Medieval, ainda que inseridos em seu mundo ficcional,  fora dos marcos nacionais usuais do século XIX em diante, dos binômios nação-estado, povo-território, entidade política e coletividade social. 

Assim sendo, os estígios teriam uma mesma língua, seriam uma mesma nação étnica, governados por um Estado centralizado, uma entidade política estável, o mesmo valendo para quase toda a Aquilônia (com exceção de Pontain e da Gunderlândia, que constituiriam-se em feudos semi independentes), para a Nemédia e tantos outros reinos ou civilizações do mundo ficcional de Conan. 

O recorte espacial de sua Era Hiboriana não seria nem aquele do medievo e suas identidades fluídas e feudais e nem aquele do Mundo Antigo, com seus contrastes regionais e seus conflitos endêmicos entre centro e periferias conquistadas, mas sim, o espaço delimitado do mundo contemporâneo, ainda que os povos representados nesse espaço se parecessem culturalmente com aqueles da antiguidade e do medievo.

Os estudos em torno dos "usos do passado" então demonstram o quanto um tempo pregresso, ainda que pretensamente histórico em algumas de suas bases, acaba tendo ainda mais traços contemporâneos do que aparenta. O lado positivo, em se tratando de uma obra ficcional com traços históricos, é que, tal construto, ainda que um tanto arbitrário em relação ao passado, mas sincronizado com relação ao presente, gera identidades nos leitores, que se vinculam ao referido mundo apresentado na narrativa e se deliciam com as tramas de um bárbaro errante entre suas fronteiras, tão distante e ao mesmo tempo tão próximo ao nosso mundo nacional contemporâneo.


A Era Hiboriana de Conan e suas Nações delimitadas, tal como um mapa moderno de Estados-Nações consolidados.


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